O Programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal foi instituído pela lei 11.977/09, a qual estabelece, em seu artigo 42 e seguintes, exonerações escalonadas e integrais de emolumentos devidos aos Registros de Imóveis e Tabelionatos de Notas. Ocorre que tais isenções, assim como outras estabelecidas na legislação federal infraconstitucional, são inconstitucionais.
Primeiramente, o entendimento da maioria esmagadora da doutrina, o qual é assente na jurisprudência pátria, especialmente do STF, é no sentido de que os emolumentos devidos aos oficiais de serventias extrajudiciais possuem natureza tributária -são taxas-. Ora, se são tributos, apenas o ente federado que os institui -no caso, os estados- pode conceder qualquer isenção conforme estabelecido no Art. 151, III, da CF.
Em segundo lugar, toda e qualquer gratuidade no âmbito das serventias extrajudiciais precisa ser compensada financeiramente, não podem o Estado e a sociedade locupletarem-se com o trabalho gratuito do notário ou registrador, que exerce atividade complexa na qual arca com os custos e riscos. No âmbito do Registro Civil das Pessoas Naturais, existe, na maioria dos estados, regulamentação dessa compensação e ela de fato ocorre. O mesmo não se dá no âmbito do Registro Imobiliário e do Tabelionato de Notas.
O Supremo Tribunal Federal , por ocasião de manifestação acerca do tema em decisão interlocutória na qual negou procedencia a pedido de antecipação de tutela da União nos autos da ACO 1.646, adotou os fundamentos acima expostos:
“É pacífico nesta Corte que as custas e os emolumentos judiciais e extrajudiciais têm natureza tributária (cf., por todos, a ADI 3.089, red. p/ acórdão min. Joaquim Barbosa, DJe de 01.08.2008).
A Constituição de 1988 proíbe expressamente que um ente federado conceda exoneração, total ou parcial, de tributos cuja competência para instituição seja de outro ente federado (Art. 151, III da Constituição). O obstáculo tem por objetivo proteger a ampla latitude da autonomia conferida a cada um dos entes, nos termos do pacto federativo, ao assegurar que as fontes de custeio constitucionalmente destinadas ao membro da Federação fiquem livres do arbítrio caprichoso da vontade política parcial de um de seus pares.
Em especial, a salvaguarda recebe maior prestígio quando se trata do impedimento imposto à União, ente federado que reconhecidamente conta com meios mais eficientes de pressão indireta para condicionar a conduta, as chamadas sanções políticas.
Assim, a exoneração escalonada ou integral posta nos arts. 43 e 44 da 11.977/2009 caracteriza-se como isenção heterônoma, proibida constitucionalmente, ao menos neste momento de juízo inicial.
Por outro lado, o apelo à competência da União para criar normas gerais em matéria de serviços notariais extrajudiciais é destituída de plausibilidade, por duas razões preponderantes. Inicialmente, as normas em discussão referem-se à instituição de tributos e do custeio propriamente dito dos serviços notariais, matéria que também é regulada pelos arts. 145, II e 151, III da Constituição, e não apenas do Art. 236, § 2º da Constituição.
Ademais, a própria Constituição imuniza certos fatos contra a instituição e cobrança de custas judiciais e de emolumentos extrajudiciais (Art. 5º, XXXIV e LXXVI, a e b da Constituição). A exoneração potencialmente causa desequilíbrio entre as fontes de custeio e os custos da atividade judicial e notarial, de modo a impelir os entes federados a estabelecer “forma de compensação aos registradores civis das pessoas naturais pelos atos gratuitos, por eles praticados, conforme estabelecido em lei federal” (Art. 8º da Lei 10.169/2000).
Dada a existência do dever de compensação proporcional à exoneração, o benefício estabelecido pela União tende a transferir aos estados-membros e ao Distrito Federal o custo da isenção conferida, colocando-os em delicada situação interna, considerados os anseios e pleitos dos delegados notariais que serão diretamente afetados pelas normas federais.”
Esta decisão foi proferida em Ação Cível Originária na qual a União pretendia ver anulado o Aviso No 84/10 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro -o qual orientou os notários e registradores do Estado do Rio de Janeiro a cobrarem integralmente as custas e emolumentos exonerados pelo Programa Minha Casa Minha Vida- bem como obrigar o Tribunal de Justiça a exigir dos notários e registradores por ele fiscalizados o cumprimento dos artigos 42 e 43 da Lei 11.977/09, aplicando, inclusive, as sanções legais cabíveis em caso de sua inobservância.
Importante notar, ainda, que, no Estado do Rio de Janeiro, havia sido editada a Lei Estadual 5.788/10 a qual estabelecia, no âmbito estadual, as exonerações do Programa Minha Casa Minha Vida. Lei estadual cuja iniciativa foi do Governador do Estado, seu texto limitava-se a repetir os descontos estabelecidos pela lei federal instituidora do Programa Minha Casa Minha Vida, acrescentando, ainda, que tais descontos não gerariam qualquer ônus para o Estado do Rio de Janeiro. Ocorre que tal lei, a nosso ver acertadamente, foi declarada inconstitucional pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça carioca (Representação de Inconstitucionalidade no 0041784-06.2010.8.19.0000).
Deixando de lado uma análise detalhada dos dispositivos constitucionais estaduais invocados, podemos dizer que dois fundamentos -e aqui o termo fundamento deve ser entendido como premissa suficiente para em si mesma justificar a procedência (ou improcedência) de determinado pedido, em contraposição ao mero “argumento”, que, embora reforce os fundamentos, não tem força suficiente para, por si só, justificar a procedência ou não de um pedido)- os quais possuem positivação, também, na Constituição Federal, embasaram a declaração de inconstitucionalidade: a violação da autonomia orçamentária do Poder Judiciário, e a proibição, considerando o caráter privado do exercício da delegação cartorária extrajudicial, de o Estado estabelecer gratuidades nestes serviços sem uma forma de compensação.
Acerca do primeiro fundamento, a independência e harmonia entre Poderes é princípio fundamental da República Federativa do Brasil (Art. 2o da CFRB), alçada ao grau de cláusula pétrea (Art. 60, § 40, III) a separação entre os poderes tem como pressuposto necessário a autonomia financeira e administrativa, havendo previsão expressa e específica desta ao Poder Judiciário (Art. 99, caput) sendo competência privativa da presidência dos Tribunais de Justiça as respectivas propostas orçamentárias (Art. 99, § 1o e § 2o, II). Ora, sendo as custas e emolumentos destinados exclusivamente para o custeio dos serviços relacionados a justiça (Art. 98, § 2o), é evidente que lei de iniciativa do Governador que venha a exonerar o pagamento de custas e emolumentos viola a autonomia do Judiciário e padece de grave inconstitucionalidade.
Acerca do segundo, os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado (Art. 236, § 2o), assim sendo, é evidente que não pode o notário ou registrador se ver compelido a trabalhar de forma gratuita e, ainda por cima, arcando com os custos e riscos que a atividade acarreta. De fato, o Estado forçar alguém a trabalhar sem qualquer forma de remuneração viola direitos fundamentais positivados tanto no direito nacional quanto internacional. No âmbito da Constituição, salta aos olhos que o sistema repele o enriquecimento sem causa e proíbe a imposição do trabalho forçado mesmo enquanto penalidade (CFRB Art. 5o, XLVII, c), ao mesmo tempo em que assegura o direito a indenização por dano material (Art. 5o, V) -a qual se averiguaria no caso em tela pelos gastos dispendidos na atividade bem como lucros cessantes por não estar realizando outros atos-. Ademais, a justa indenização pela tomada de bens -sendo que o termo bens, a nosso ver, deve ser lido de maneira ampla, abrangendo o trabalho humano- e a proibição da exploração do homem pelo homem são previsões expressas do Pacto de São José da Costa Rica (Art. 21, 2 e 3 da Convenção Americana de Direitos Humanos).
Por fim, inconstitucionalidade que não foi aventada nos casos acima, mas da qual a nosso ver, padece a Lei 11.977/09 é a da não especificidade. Por força do Art. 150 § 6o da CFRB, a lei que instituir isenção fiscal deverá ser específica, não podendo tratar de matéria diversa. No caso em tela, a Lei 11.977 institui um complexo programa de habitação, dispõe acerca de regularização fundiária e faz diversas alterações em outros diplomas. Em meio a tudo isso, institui pontualmente isenções sobre os emolumentos cartorários, os quais, relembramos, são tributos.
Conclusão
As exonerações escalonadas e integrais instituídas pelo Programa Minha Casa Minha vida somente poderiam ter sido estabelecidas em lei Estadual que cumulativamente:
a) Tenha sido de iniciativa do Poder Judiciário;
b) Estabeleça mecanismo de compensação aos notários e registradores pelos atos praticados;
c) Seja específica, não tratando de matéria diversa, limitando-se a instituir as exonerações e seu mecanismo de compensação.
Somam-se a estes requisitos, ainda, outros que decorram das respectivas constituições estaduais, cuja análise fugiria ao escopo deste breve texto, merecendo análise individual do ordenamento constitucional de cada Unidade da Federação.
Fonte: www.corvello.adv.br